Manuel Bandeira

Nascido em 19 de abril de 1886 em Recife, Manuel Bandeira é um dos principais nomes da primeira geração do Modernismo brasileiro. Marcado pela sua icônica participação na Semana de Arte Moderna de 1922 com o poema Os Sapos, ele criou uma poesia caracterizada pelo estilo direto, pelo lirismo, por certa melancolia associada à angústia e, muitas vezes, por uma nostalgia ligada à infância. Entre os poemas que compõem sua admirável obra, há diversos deles que encantam os pequenos, como o tão famoso “Trem de Ferro”. Afinal, quem não se lembra de ter ouvido “café com pão/ café com pão/ café com pão” em algum momento da infância? Nos posts seguintes, vamos lembrar não só esse, mas outros poemas de Bandeira que trazem ainda mais magia ao universo infantil.

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Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

(O último poema)


Poema – “Balõezinhos”

BALÕEZINHOS

Na feira do arrabaldezinho
Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:
– “O melhor divertimento para as crianças!”
Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres,
Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos.

No entanto a feira burburinha.
Vão chegando as burguesinhas pobres,
E as criadas das burguesinhas ricas,
E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza.

Nas bancas de peixe,
Nas barraquinhas de cereais,
Junto às cestas de hortaliças
O tostão é regateado com acrimônia.

Os meninos pobres não vêem as ervilhas tenras,
Os tomatinhos vermelhos,
Nem as frutas,
Nem nada.

Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a única                                                              [mercadoria útil e verdadeiramente indispensável.
O vendedor infatigável apregoa:
– “O melhor divertimento para as crianças!”
E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um círculo inamovível                                                                                                     [de desejo e espanto.

***

Publicado no livro O Ritmo Dissoluto (1924), “Balõezinhos” retrata uma típica cena da vida prosaica: um vendedor de balões cercado por crianças em uma feira qualquer. Essas crianças – os “meninos pobres”, não têm dinheiro para comprar os balões coloridos, “a única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável”, mas ainda assim não se cansam de olhá-los, com “desejo e espanto”.

A própria imagem do vendedor, ainda que se contraponha à dos meninos por ser a pessoa que vende os balões, é também uma representação da pobreza, do trabalhador informal. Ao mesmo tempo, o poeta parece estabelecer uma relação de oposição entre o aspecto lúdico e doce das crianças desejando os balõezinhos coloridos e a ideia de aspereza que vem da compra daquilo que é considerado “útil”: “Nas bancas de peixe,/ Nas barraquinhas de cereais,/ Junto às cestas de hortaliças/ O tostão é regateado com acrimônia”.

Mas nada disso importa aos meninos. Para eles, o que chama atenção mesmo são aqueles objetos “muito redondos” que são estão ali pertinho, mas não podem ser deles. E, afinal, não é assim que é a infância? O que importa quando se é criança não é aquilo de que se precisa. É aquilo com que se sonha.

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Poema – “Na Rua do Sabão”

NA RUA DO SABÃO

Cai cai balão
Cai cai balão
Na Rua do Sabão!

O que me custou arranjar aquele balãozinho de papel!
Quem fez foi o filho da lavadeira.
Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito.
Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, compôs os gomos oblongos…
Depois ajustou o morrão de pez ao bocal de arame.

Ei-lo agora que sobe – pequena coisa tocante na escuridão do céu.
Levou tempo para criar fôlego.
Bambeava, tremia todo emudava de cor.
A molecada da Rua do Sabão
Gritava com maldade:
Cai cai balão!

Subitamente, porém, entesou, enfunou-se e arrancou das mãos que o tenteavam.
E foi subindo…
para longe…
serenamente…
Como se enchesse o soprinho tísico do José.

Cai cai balão!

A molecada salteou-o com atiradeiras
assobios
apupos
pedradas.

Cai cai balão!

Um senhor advertiu que os balões são proibidos pelas posturas municipais
Ele foi subindo…
muito serenamente…
para muito longe…
Não caiu na Rua do Sabão.
Caiu muito longe… Caiu no mar – nas águas puras do mar alto.

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“Na rua do sabão” foi publicado em 1924 no livro O Ritmo Dissoluto. Partindo de um refrão tão popular (afinal, que não conhece “Cai cai balão/ Cai cai balão/ Na rua do sabão”?), Bandeira retoma imagens da sua infância , possivelmente versificando um episódio que viveu enquanto criança, ativando, assim, a memória de todos nós. Com elementos do cotidiano – crianças soltando balões (a despeito da proibição) e correndo atrás deles, Bandeira escreve o poema em versos livres, inspirado pelo espírito modernista.

Para quem conhece a biografia do poeta, talvez seja clara a relação entre ele e o filho da lavadeira, “(…) que trabalha na composição do jornal e tosse muito”. Diagnosticado com tuberculose antes dos vinte anos de idade, Bandeira registrou a doença diversas vezes em sua obra.

Porém, se por um lado o poema traz memórias distantes aos adultos que os leem, ele também é muito bem recebido pelo público infantil. Soltar balões já não faz parte dos costumes atuais (ainda bem!), mas soltar pipa ainda continua encantando os pequenos, que se reconhecem nos versos desse poema, além de identificarem o refrão de uma cantiga tão popular. E então, vamos cantar?


Poema – “Trem de Ferro”

TREM DE FERRO

Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Oô…
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
de cantar!

Oô…
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô… Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede

Oô…
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô…
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente…

Publicado no livro Estrela da Tarde, em 1960, “Trem de Ferro” é composto por 53 versos e dividido em 6 estrofes de tamanhos irregulares. O ritmo do poema pode ser lido como o ritmo do trem, assim como foi feito pelo famoso gato da biblioteca do Castelo Rá-tim-bum, programa infantil dos anos 1990 produzido e exibido pela TV Cultura. Para observar como isso foi feito (e para matar um pouquinho a saudade da infância, claro), aí vai o vídeo:


Poema – “Porquinho-da-Índia”

PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . .

— O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

porquinhodaindia

“Porquinho-da-índia” nos faz recordar aquele primeiro bichinho de estimação que tivemos, que tanto pedíamos a nossos pais.

Analisando o poema, percebemos a presença da linguagem coloquial e emotiva, bem como uma construção assimétrica. Há ainda a presença recorrente do diminutivo em “bichinho”, “limpinhos” e “ternurinhas”, que remete ao universo infantil. Além disso, é possível identificar uma aliteração dos fonemas “s”, “n” e “m” e a assonância das vogais “a” e “o”.

Assim como Manuel Bandeira, muitos têm o seu bichinho de estimação como o primeiro amor ♥


Poema – “A Onda” 

A ONDA

A onda
a onda anda
aonde anda
a onda?
a onda ainda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda a onda

Publicado em 1960 no livro Estrela da Tarde, “A Onda” é um poema composto por 10 versos curtos que brincam com as palavras “onda”, “aonde”, “anda” e “ainda”, em um jogo de sons que traz ritmo e movimento – tudo aquilo que as crianças gostam na poesia. Para entender melhor e observar recursos como aliteração e paranomásia, confira a animação que a L&PM fez desse poema: